Fotos de Arquivo Pessoal
Marília Guimarães e um dos filhos, hoje adultos
Aos 24 anos, a professora Marília Guimarães era peça importante na Vanguarda Popular Revolucionária, a VPR, organização armada de extrema esquerda que lutava contra o regime militar naquele final dos anos 1960.
Dona de uma escola com 800 alunos no bairro Coelho Neto, no Rio de Janeiro, ela usava o estabelecimento para reuniões e copiava no mimeógrafo panfletos para o grupo. A situação se complicou muito quando militares invadiram a escola exigindo explicações sobre o equipamento, que dias antes tinha sido escondido na casa de um guerrilheiro, preso em Niterói, em fevereiro de 1969.
Sozinha, com dois meninos de três e dois anos para criar — o marido Fausto Machado Freire, também do movimento, estava preso por se envolver em assaltos —, ela corria o risco de ir para cadeia a qualquer momento. Marília abandonou tudo, fugiu com as crianças para Minas Gerais, onde nascera e tinha parentes, e a decisão da VPR foi de tirar os três do Brasil. Como? Sequestrando um avião no Uruguai, onde tinha aliados e apoio dos Tupamaros, grupo guerrilheiro local.
Mãe e filhos desembarcaram de ônibus em Porto Alegre, vindos de São Paulo, no começo de dezembro de 1969. Marília se hospedou no Hotel São Luiz, depois no Majestic.
— Via o Mario Quintana no café da manhã, mas não me sentia à vontade em falar com ele — recorda.
O destino dela seria decidido em encontros à beira do lago da Redenção, com André, o nome falso de Cláudio Galeno de Magalhães Linhares, primeiro marido da presidente Dilma Rousseff, também integrante do grupo. Galeno era um dos coordenadores no RS da VAR-Palmares — resultado de uma fusão ocorrida meses antes, da VPR com a Colina (Comando de Libertação Nacional).
Das reuniões, também participava James Allen da Luz, o Andrada, guerrilheiro da ala vermelha, a mais radical da VAR-Palmares, que vivia refugiado no Uruguai e comandaria o sequestro. Era a largada da operação que em poucos dias desafiaria o regime militar.
Um Fusca na fuga de Porto Alegre
Em uma madrugada naquele dezembro de 1969, Marília, os dois meninos e Galeno se espremeram com bagagens no banco traseiro de um Fusca, partindo de Porto Alegre para Montevidéu. Sentado à frente, um casal de amigos entregou novos documentos. Na viagem, a professora seria Miriam. Na capital uruguaia, se instalaram em uma pousada.
Foram compradas passagens para o Brasil para Galeno, Marília, as crianças, James, e outros três guerrilheiros: Athos Magno Costa e Silva, Isolde Sommer, a Severina, e Luiz Alberto da Silva, o Conga — o único sem registro nos arquivos policiais e que se juntara ao grupo na última hora. O voo escolhido era o 114, da Cruzeiro do Sul, com partida às 19h32min de 1º de janeiro de 1970. Como o plano foi programado para o meio de um feriadão, a data exata da operação acabou confundindo jornais da época, que chegaram a noticiar que a decolagem havia ocorrido na véspera.
Enquanto os guerrilheiros definiam detalhes da ação naquela manhã de quinta-feira, o piloto de avião Mário Amaral e o colega Hélio Borges curavam em Ipanema, no Rio, uma ressaca da noitada de Réveillon. Até que o telefone deles tocou. Um Caravelle da Cruzeiro que voltaria do Uruguai no começo da noite tinha estragado no aeroporto de Carrasco, e eles teriam de fazer uma viagem de emergência para cumprir a rota do voo 114.
— Estávamos de folga, fui dormir bêbado, lá pelas 4h (do dia 1º). Mas o cara da escala me ligou. Aí, reclamei: porra, e o cara do sobreaviso? — conta Borges.
— Tá doente — respondeu o interlocutor.
Estava abortado o feriadão de Ano-Novo de Amaral, Borges e outros cinco colegas.
— Voltava do enterro da minha sogra quando fui avisado. Fomos só com a roupa do corpo, sem mala, sem nada — lembra o comissário José Omar da Silveira Morais.
O Caravelle, prefixo PP-PDZ, decolou do Galeão às 15h com os sete tripulantes, chegando perto das 18h na capital uruguaia. No saguão do aeroporto de Carrasco, Marília se virara para segurar bolsas com roupas, fraldas, mamadeiras e cuidar dos filhos. Inquietos, os meninos corriam toda vez que uma porta abria em direção ao pátio dos aviões. Prestativo, um policial se apressou em entreter as crianças.
— Uma ironia, ajudando uma pessoa que sequestraria um avião — recorda Marília.
A ordem é ir para Cuba, mas, antes, é preciso parar em Buenos Aires
Embora não existisse detector de metais no aeroporto uruguaio de Carrasco, Marília embarcou apreensiva no Caravelle. Baixinha e magrinha — pesava apenas 42 quilos—, aparentava ser mais obesa. Sob o tubinho, moda naquela época, usava uma bermuda elástica que escondia seis revólveres.
Atrapalhada com bolsas, crianças e bagagens no corredor do avião, Marília aproveitou a confusão para ir ao banheiro, retirar as armas e entregar uma para cada colega. Considerando os sequestradores, eram 26 passageiros — 12 brasileiros e os demais uruguaios, argentinos, dois romenos e um norte-americano.
Os sequestradores se espalharam pelos 64 lugares do Caravelle, quase vazio. Marília, os filhos e Galeno ficaram no meio. James Allen da Luz, o líder, se acomodou na primeira fila. Isolde Sommer e outro sequestrador foram para o fundo. Quatro minutos depois da decolagem, a aeronave ainda inclinada, Nerly Baradel, chefe dos comissários, saudava os passageiros com anúncios de praxe.
— Senhoras e senhores, este é o voo 114 com destino ao Brasil, com escalas em Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro...
Alguém resmungou que o voo original não pararia em Porto Alegre, quando James sacou o revólver e gritou:
— Agora!
Empurrou Nerly e invadiu a cabina, que não ficava trancada. Lá estavam o comandante Mario Amaral, o copiloto Silvio Eduardo de Carvalho Fróes e o segundo oficial Hélio Borges.
— Estava meio sonado e apareceu aquele maluco com um revólver na minha cara, um Smith & Wesson, muito bonito, niquelado, engatilhado. Via as balas no tambor — diz Borges.
James anunciou o sequestro, exigindo que a aeronave fosse para Cuba. O comandante tentou argumentar. Advertiu que o Caravelle só tinha combustível para duas horas e precisaria parar em Porto Alegre para abastecer.
— Brasil, não — gritou James.
A alternativa era Buenos Aires. O piloto reprogramou os controles e avisou:
— Senhores passageiros, fiquem calmos, o avião está sendo sequestrado.
Ao ouvir o alerta, Sofia Ferber, 70 anos à época, desmaiou, caindo ao lado do marido José Ferber, 72 anos. O casal de poloneses naturalizado uruguaio viajava com a filha Sara, 39 anos, para o casamento do outro filho, em São Paulo. No fundo do avião, os comissários Eliete Dias de Carvalho e Ogier Passos Soares também já estavam dominados. Passos ofereceu aos sequestradores cigarros, fósforos, lanche, água, café, bebidas. Tudo estava ao dispor.
— A tensão era grande, e tentamos agradá-los. Sabe-se lá qual seria a reação. Estavam ali para ganhar ou perder — lembra ele.
Os militantes redigiram um manifesto contra a ditadura. Borges deveria descer para reabastecer a aeronave em Buenos Aires e entregar o documento às autoridades locais.
O pedido de pouso em Ezeiza exigia contato com a torre de controle, e os pilotos relataram o que ocorria no aparelho. Com problemas cardíacos, José e Sofia Ferber foram os únicos a descer, separando o casal da filha Sara. O assunto logo chegou à imprensa.
— Avisaram ao mundo inteiro que eu estava no avião com duas crianças. Foi o que salvou as nossas vidas — comenta Marília.
O Caravelle foi abastecido, a contragosto das autoridades argentinas. Mandaram alinhar caminhões na pista para trancar a passagem, mas não conseguiram impedir a decolagem.
Isolde, participante do sequestro, chamava atenção pela beleza FOTO: Reprodução
O passageiro secreto
Já era madrugada de sexta-feira, 2 de janeiro de 1970, e o Caravelle se aproximava da pista do aeroporto Cerro Moreno, em Antofagasta, no norte chileno, para o segundo reabastecimento.
Apesar de os pilotos desconhecerem a rota — a Cruzeiro do Sul não voava para o Chile —, a viagem transcorreu sem sobressaltos. Preocupado com a onda de sequestros de aviões, o copiloto Sílvio Eduardo de Carvalho Froés já vinha pegando informações com colegas sobre o caminho para Cuba. E durante o reabastecimento em Buenos Aires, o segundo oficial Hélio Borges tinha ganho um mapa de navegação nos Andes de um profissional da Varig.
Em terra chilena, o clima era de serenidade. O governo socialista de Salvador Allende era simpático às causas dos guerrilheiros brasileiros. Além de combustível, Borges e o comissário José Omar da Silveira Morais puderam descer para pegar comida e jornais.
Mas, dentro do avião, uma passageira, Mary Nôvo (já falecida), explodia de raiva. Ela e o marido, o engenheiro civil Luiz Fernando Nôvo, voltavam para São Paulo depois de alguns dias de férias na Argentina e no Uruguai. E Mary não se conformava com a situação.
— Minha mulher colocou o dedo na cara de um deles e deu uma de mamãe. Disse: "Você é um desgosto para a tua mãe, ela nunca mais vai te ver" — recorda o engenheiro.
Surpresa maior com os passageiros ainda estava por vir: sentado bem à frente, Flávio Macedo Soares, 29 anos, dava início a uma "queima de arquivo". Com um faca de metal, cedida por uma comissária, rasgou um bolsa de lona, lacrada com uma tarja verde e amarela. A todo instante, ia ao banheiro e voltava. A movimentação chamou atenção.
— Perguntei ao Galeno: você acha que esse homem está com dor de barriga? E fomos ao banheiro. O vaso e outros compartimentos estavam todos entupidos de papéis. Não dava para ler. Penso que eram relatórios da Operação Condor. Ele levou o maior susto quando foi descoberto — lembra Marília Guimarães.
Soares, já falecido, era secretário do Ministério das Relações Exteriores. Sua missão: transportar a mala diplomática até o Rio de Janeiro — o meio mais seguro para remessa de documentos oficiais e secretos que não podiam ser despachados pelo correio.
Quando Brasília descobriu que Macedo estava entre os passageiros, o pânico se instalou no Itamaraty, mas em sigilo absoluto. Os temores eram: Soares estava ou não com a mala diplomática? Quem colocaria as mãos nos documentos sigilos, os sequestradores ou os comunistas cubanos? Nos céus dos Andes, Soares enfrentava uma turbulência pessoal.
— O James achava que ele estava a serviço da CIA, que estava armado. Falou ao comandante que iria interrogá-lo e, caso reagisse, seria morto — diz Borges.
A tripulação se desesperou. O secretário do Itamaraty foi revistado e, por sorte, só portava o passaporte vermelho. Depois, com um revólver apontado para o peito, teria sido obrigado a escrever uma carta na qual admitia ter violado a mala diplomática. Em Havana, os documentos rasgados, parte deles sujos de fezes e urina, teriam sido entregues a autoridades locais, que, por sua vez, teriam devolvido os papéis ao secretário do Itamaraty. Ao final do sequestro, o governo brasileiro evitou falar sobre o episódio.
27 horas de medo em Lima
Assim que o trem de pouso tocou o aeroporto Jorge Chávez, em Lima, o Caravelle foi cercado por militares peruanos. A ordem do general Velasco Alvarado, presidente do Peru, era de negociar à exaustão uma rendição, "matando" os sequestradores no cansaço.
A ação dos brasileiros era manchete mundial naquele 3 de janeiro de 1970, e jornalistas, políticos e curiosos correram para o aeroporto. Autorizado a providenciar o reabastecimento do avião, o segundo oficial Hélio Borges desceu com uma carta para entregar a repórteres que se apinhavam na pista.
Mas poucos conseguiram ler a mensagem dos sequestradores porque disputaram o papel aos empurrões e rasgaram o bilhete. Uma das frases dizia que o grupo pertencia à VAR-Palmares e que os dois meninos não eram reféns. Marília, a guerrilheira que fugia para Cuba com os dois filhos — o principal motivo do sequestro do Caravelle—, lembra ter visto faixas de apoio a ela nas janelas do aeroporto. Mas, aos poucos, foram sumindo, enquanto se aproximavam carros militares de combate.
— Era uma praça de guerra. Colocaram uma metralhadora quase encostada na cabina. Queriam bloquear o avião de qualquer jeito. Soube, depois, da preocupação com aquela mala diplomática do Itamaraty, mas, na hora, não liguei um fato a outro — recorda Borges.
Logo que desceu, ele foi chamado para falar com autoridades peruanas, e voltou à aeronave como uma proposta: asilo político para Marília e os filhos. A contrapartida: liberar os reféns, que seriam transferidos para uma aeronave militar.
— Não aceitei. Invadiriam o avião com meus companheiros lá dentro — recorda Marília.
Além das dificuldades diplomáticas, a viagem até Cuba estava ameaçada por um grave problema técnico: uma pane elétrica impedia o acionamento do motor direito e o sistema de refrigeração. As baterias torraram, e o aeroporto não dispunha de equipamento específico para acionar aquele tipo de turbina — Caravelle era um modelo em desuso e já não pousava mais em Lima.
A companhia Avianca trouxe baterias da Colômbia. Eram velhas e não funcionaram. As horas avançavam, e os militantes, cada vez mais impacientes, ameaçavam matar reféns.
— Pedi baterias novas, pelo amor de Deus. Todo mundo puto da cara dentro do avião, nervoso, falando coisas horríveis. Depois de quase um dia de conversa, concordaram em comprar — lembra Borges.
A companhia LAN levou outro equipamento do Chile. Enquanto isso, repórteres e fotógrafos faziam plantão no aeroporto, e alguns sequestradores se exibiam na cabina do Caravelle. Com um cartaz de Che Guevara nas mãos, Athos Magno Costa e Silva afirmava que iriam treinar com guerrilheiros cubanos e celebrar os 10 anos da ascensão de Fidel Castro. Isolde Sommer, a outra mulher do grupo, foi destaque na capa de jornais.
— Ela era uma jovem morena, linda, com as pernas maravilhosas. Vestia uma minissaia estampada, com um palmo de comprimento — lembra o comissário José Omar da Silveira Morais, hoje com 72 anos e morador de Barbacena (MG). Após 27 horas em Lima, o avião seguiu para o Panamá.
No Panamá, plano de invasão assusta comissário
Nada poderia ser pior do que as tenebrosas 27 horas em Lima, mas a parada seguinte do voo, reservava momentos de tensão no Panamá, a última escala antes de Cuba.
Nem os tripulantes nem os sequestradores previram que o ambiente seria tão hostil. Sob forte domínio de Washington, o país estava recheado de militares americanos que controlavam a região do Canal do Panamá, com treinamento de guerrilha e tortura na selva.
A chegada, na manhã de 3 de janeiro de 1970, até que foi tranquila. O Caravelle parou longe do saguão, e os únicos que se aproximaram foram dois funcionários da Shell, em um Jipe, para providenciar o abastecimento.
Como nos outros países, o segundo oficial Hélio Borges desceu com um cartão de crédito da Cruzeiro do Sul para comprar o combustível. Foi quando avistou um homem de terno e gravata, caminhando na direção do veículo. Era um representante da embaixada do Brasil, exigindo que todos desembarcassem.
— Falei que já tinham tentado isso no Peru. Mas voltei ao avião, e a resposta dos sequestradores foi: "Não tem papo, manda ele à merda".
Borges seguiu no Jipe para o hangar da Shell e foi abordado por outro homem falando português, acompanhado de militares e seis soldados panamenhos com fuzis a tiracolo. Era um coronel do Exército:
— Preciso da sua ajuda. Tenho ordens de parar este avião aqui. Como vai ser?
— Ele queria me dar uma pistola 45 para que eu atirasse no primeiro sequestrador que visse dentro do avião. Claro que disse não. Aí ele falou: "Então, vamos mandar comida envenenada ou colocar gás na tubulação de ar". Vai matar muita gente, eu disse — lembra Borges.
Outro oficial brasileiro, indignado, gritou:
— É por causa de um bunda mole como você, que estão sequestrando avião.
Enfurecido, Borges se virou de costas em direção ao galpão de combustíveis. O coronel o agarrou pelo braço e advertiu:
— Faça o que achar melhor, mas antes me diz o teu nome. Fique sabendo que, ao voltar ao Brasil, você vai ver o que é bom pra tosse.
O comissário José Omar da Silveira Morais desceu para buscar refeições e viu marines americanos atrás de árvores, com uma metralhadora com luneta e mira telescópica apontada para a cabine do Caravelle. Um militar teria tentado cooptá-lo, oferecendo uma arma.
— Eu deveria entrar atirando e eles, depois. Como não sabiam quem eram os sequestradores, seria um banho de sangue. Eu seria o primeiro a morrer. É claro que não aceitei — diz Silveira.
Suspeito de ter colaborado com os sequestradores, Silveira foi pressionado no Brasil. Acabou perdendo o emprego dois anos depois. Hoje, luta por indenização. Sempre negou relação com os militantes.
Além de combustível, a aeronave precisava de um lubrificante para turbinas. Funcionários reviraram armários da Shell, folhearam catálogos em busca de um similar, e nada. Para completar, o aeroporto de Tocumen não dispunha de fonte de energia para acionar os motores do Caravelle. Após cinco horas, as turbinas foram acionadas com baterias velhas.
Em Cuba, os papéis se invertem
viagem entre a Cidade do Panamá e Havana durou duas horas e 15 minutos. O tempo todo com luz vermelha piscando no painel da cabine do Caravelle. Quase sem lubrificante, uma das turbinas ameaçava ter uma pane a qualquer instante. A recepção no aeroporto José Martí também estava a cargo de militares. Mas, desta vez, aliados dos sequestradores.
Um grupo de oficiais entrou na aeronave perguntando quem era a mulher com os dois filhos. Carlos Lamarca, um dos chefes do grupo guerrilheiro Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), tinha enviado carta para El Comandante Fidel Castro, pedindo uma atenção especial a Marília Guimarães.
— Cheguei que era um trapo em Havana, quase delirando. Passei a maior parte do tempo (dois dias) sem comer e sem beber com medo de envenenamento. Só molhava os lábios com o que tinha nas mamadeiras das crianças. O sequestro terminaria quando acabasse o leite e a água deles — garante Marília.
— Os sequestradores davam as refeições, aleatoriamente, para pessoas da tripulação e esperavam bastante tempo para comer — lembra o copiloto Sílvio Eduardo de Carvalho Fróes.
Ele, os colegas e os passageiros foram levados pelos militares cubanos em um micro-ônibus para uma sala, também isolada, com sanduíches e refrigerantes.
— Fizeram muitas perguntas, querendo saber qual a tendência política da gente — conta a chefe dos comissários, Nerly Baradel.
O comissário Ogier Passos Soares afirma que, além do interrogatório, ainda foram submetidos à sessão de fotos e coleta de impressões digitais.
— Fotos de frente e de lado, como bandido — lamenta ele.
A alegação era de que a tripulação estava ali clandestinamente, pois não tinha autorização legal para pousar em Cuba. Os sequestradores foram acomodados no Hotel Capri, e os reféns, no Havana Riviera, distantes poucas quadras. Por algum tipo de precaução, foram todos proibidos de sair.
Apesar da liberdade para tomar banho e descansar, a alta carga de estresse impedia os reféns de adormecer.
— Fiquei 60 horas acordado. E, depois que cheguei em casa, também custei a dormir. Em uma situação dessas, você perde a noção do sono, do frio, da fome — conta o copiloto Fróes.
O sequestro tinha acabado, mas a confusão envolvendo o Caravelle iria longe. Além dos problemas mecânicos a serem resolvidos, a aeronave não poderia regressar ao Brasil sem o pagamento de taxas aeroportuárias cubanas — há relatos de que seriam de US$ 20 mil a US$ 50 mil.
Como os militares tinham cortado relações diplomáticas com Cuba em 1964 (reatadas só em 1986), o Brasil precisou pedir ajuda à embaixada da Suíça para desatar os nós.
Em 7 de janeiro de 1970, o Caravelle aterrissou no Galeão, no Rio de Janeiro, depois de uma escala em Porto Rico para dar explicações ao FBI (a Polícia Federal americana), em Manaus e em Brasília.
Em solo brasileiro, todos foram interrogados pela Aeronáutica e proibidos de contar a verdade sobre o sequestro mais dramático da aviação brasileira.